segunda-feira, 21 de julho de 2014

Peregrinação a Fátima 2014 - Terceiro dia - V

Esta longa estrada que palmilhamos há algumas horas, quase seis, parece não ter fim à vista.  Pernes ainda não surge no horizonte próximo, que nada nos revela a não ser essa interminável via. Este cenário traz-me à mente uma ideia que foi germinando dentro de mim, primeiro de uma forma subtil, sem grande consistência, mas, que, a pouco e pouco, vem ganhando raízes e, quiçá, razão de ser. 
Essa estrada interminável, um dia,  poderá ser o meu destino. Mais ano, menos ano, aproveitando, ou não, este movimento peregrino, num qualquer 13 de Maio, não regressarei a sul com os meus (minhas) companheiros (as)  de caminhada, mas continuarei estrada fora, para norte, para leste, pouco interessa para onde, sem objetivo definido, senão o próprio caminhar, senão a busca continuada de mim mesmo, do sentido da vida ou de Deus em toda a sua esplendorosa essência... Apenas com a mochila ás costas, fruir da multiplicidade de experiências que esse caminhar me irá proporcionar através daquela estrada que (como escrevi noutros tempos, numa fase mais emocional/sentimental da minha vida) "nem ela própria sabia onde ia dar"...  Vem-me à memória um episódio da minha meninice :
- Então pequenote... o que queres ser quando fores grande?
- Astronauta!!!!
- Ena... astronauta... para ires à lua... he he he...
- Não... Ir à lua para quê? Já foram outros homens... Quero é seguir num foguetão e ir por esse universo fora descobrir  estrelas e planetas que ainda não tenham sido descobertos...
- E quando é que voltavas...?
- Não voltava...  Ia sempre em frente a fazer novas descobertas...
- E não ias ter saudades dos teus pais e dos teus irmãos?
Nesta altura eu embatuquei... porque, na realidade, na minha imaginação criadora, não tinha pensado nessa consequência... Não voltei a pronunciar palavra nesse dia... enquanto o adulto destruidor de sonhos, olhava para mim, de quando em vez, com um sorriso idiota no rosto e um olhar porcino onde brilhava uma autoconsciência de inteligência superior traduzida na expressão "ho...ho...ho... arrasei o chaval"... 
Hoje em dia a maior parte dessas referências familiares já partiu e aos que restam não faço propriamente falta, pelo que, o que verdadeiramente me impede de partir são outras referências, não familiares,  que serei incapaz de abandonar... São pessoas para quem sempre estarei disponível até ao fim dos meus/seus dias... Se partirem primeiro então sim... seguirei o meu destino estrada fora... Partir para uma jornada infinda, em busca de um destino diferente... em vez de terminar os meus dias numa qualquer "Casa de Repouso", entre roupa há muito suja e encharcada e vozes que em surdina o moribundo vai ouvindo:
- Esse velho é memo ruim... Nem a mortche quer nada com ele... Puxa vida..."
Trim... Trim...
- Alô
- Lucilene...
- Sim... quem fala aí...?
- É da funerária... Já aqui estou na porta dos fundos com  o caixão... Já posso ir buscar o velho?
-  Ainda não... Está quase se escafêdendo... mas ainda não se escafêdeu... É bem ruim... o bicho...
- É que está quase na hora da bola...
- Oi cara vai esperando... Se prepara porrrque v'cê tem muito que trabalharrr... Vai ter que limpar o cara...
- Limpar... porquê?
- Porrrque eu já não limpo ele faz 3 dias... Ele está se escafêdendo...
- Não sou eu que o vou limpar... Esse trabalho é teu...
- Eu não limpo morrrto não... Isso é com v'cê...
- Mas ele ainda está vivo..
- Porrr pouco tempo né... Já disse a v´cê que ele está se escafêdendo... Além disso tou fazendo minha unha... laranja com marrom... V'cê gossssta...?
Entretanto, no primeiro andar... no gabinete da direção:
- Boa tarde Srª Drª... Já posso levar o paizinho para aí...?
- Não... Infelizmente não... Ainda não abriu vaga...
- Mas... a senhora disse-me que hoje abria uma vaga... 
- Pois foi... mas a porra do velho... quero dizer o utente em questão... enfim... ainda não abriu vaga... Não sei se me faço entender...
- Mas eu vou de férias esta tarde... Necessito de deixar aí o paizinho... Já larguei o cachorro na rua de trás... mas... não posso lá deixar o paizinho querido... ou... será que vocês o iam lá buscar...?
- Naaaa... Nós nós não recolhemos paizinhos... Tem que ser a senhora a trazê-lo... Além disso quando o trouxer tem que pagar a mensalidade... claro...
- Oiça... e se a senhora der um jeito de a vaga abrir mais cedo... ainda esta manhã... eu pagava-lhe uma pequena comissão fora da mensalidade... É que eu preciso de ir de férias hoje... Tenho a casa no Algarve já alugada...
- A senhora não está a sugerir que eu...
Entretanto cá em baixo:
- Lucilene...
- Oi cara que v´cê quer...?
- Novidades...?
- Não há nóvidadesss...  Tou terminando minha unha... V'cê vai adorarrr...
- Tá na hora da bola... Porque é que não dás um jeito no velho...
- Um jeito... V'cê tá sugerindo a tátchica da aumofada... como da uuutima vezsss...
- E da penúltima... Sim despacha-te...
- Cerrrto cara... masss... vou estragar minha unha... Minha comissão tem que ser mais gorrrda... Me dá 5 minutos...
Cinco minutos depois...
- S' escafedeu... S' escafedeu... Buaaaa... Tadinho... Quem me ajuda... O pobre coitado s' escafedeu...
Não... poucochinho... prefiro ser eu a escolher o meu próprio destino... Como diz o poeta (neste caso concreto, Chico Buarque em Cálice) "Talvez o mundo não seja pequeno/nem seja a vida um facto consumado/Quero inventar o meu próprio pecado/quero morrer do meu próprio veneno..." 
Prefiro sair mundo fora, como Paulo de Tarso pelo Médio e Próximo Oriente, como os Padres do deserto, esses homens e mulheres embriagados   de Deus, no seu percurso ascético pelo deserto egípcio, como os eremitas de todos os tempos, como o Velho de Teixeira de Pascoaes em Jesus e Pã ou o Zaratustra nietzscheano... Prefiro cair nos húmidos arrozais do Mekong, no Vietname... nas geladas estepes siberianas apenas acompanhado pelo irmão lobo, ou nos cálidos desertos do mundo... porque não no Kalahari... seria, de facto, a suprema ironia... Prefiro  partir... sem tristezas... sem dramas... sem roturas... Partir em paz com o mundo... Partir... para não voltar... ou voltar... para partir... novamente...










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