segunda-feira, 7 de julho de 2014

Peregrinação a Fátima 2014 - Segundo dia - VIII

Nos momentos que antecedem a subida que nos levará a Santarém chego um pouco à frente do grupo... Algumas dezenas de metros apenas... e fico com a visão total de toda a coluna. É um exercício que gosto de fazer de quando em vez... Observar o grupo enquanto tal, serpenteando estrada fora, e simultaneamente, cada um dos Caminhantes em particular, não na sua identidade específica e representável por um nome e uma personalidade, mas na sua condição de homem (em sentido lato), crente convicto em Nossa Senhora. 
Olhando para vós, determinados no esforço, firmes na crença, inabaláveis na fé, vêm-me à mente todo aquele conjunto de argumentos que, de vários quadrantes, questionam a missão espiritual de quem empreende esta (ou outra) peregrinação. 
Por um lado,  agnósticos (aqueles que alegam a impossibilidade de provar, ou não, a existência de Deus) e ateus (os que negam a Sua existência) apontam para a incoerência desta missão. "Se Deus existisse, e tal pudesse ser provado, jamais permitiria esse tipo de sacrifício", afirmam os primeiros. "Que Deus  é esse que vos pede tamanho sacrifício?" zombeteiam os segundos. 

Não... poucochinho... nem Deus, nem Nossa Senhora (neste caso concreto) exigem qualquer sacrifício. A nossa relação com a Divindade, não supõe nenhum tipo de sacrifício porque tem, ou deve ter, subjacente, um ato espontâneo de vontade. Não uma vontade sensível, factual ou caprichosa, mas um sentimento-ação que emerge do mais íntimo do nosso ser, uma força explosiva, natural, irreprimível. Correndo o risco de ser crucificado pelos  seus defensores ideológicos e pelos seus detratores (não ideológicos) esta vontade espontânea, geradora do movimento peregrino, como de todas as outras formas de aproximação, comunicação ou conexão com Deus, nas suas múltiplas manifestações, estão, do meu ponto de vista, muito próximas dessa força vital, dionisíaca, irresistível,  dessa lei natural a que Nietzsche chamou "Vontade de Poder (ou de Potência)".
Por outro lado, uma corrente mais ortodoxa considera que este tipo de movimento apenas é verdadeiramente genuíno, apenas faz sentido enquanto trabalho espiritual de fundo, a quem cumprir os ditames prescritos pela Igreja Católica em toda a sua extensão. Creio que esta radicalização do discurso também não se aplica ao sentimento generalizado de quem se propõe a fazer este tipo de percurso espiritual. Cada um dos milhares de peregrinos que percorrem as estradas portuguesas, rumo a Fátima, tem uma relação muito própria, e por isso mesmo, única, com Deus. Estando ou não de acordo com o que é preconizado pela Igreja Institucional (e uma percentagem muito elevada desses peregrinos cumpre esses pressupostos by the rules)   o importante é que essa forma de relacionamento lhes permita uma maior aproximação ao divino e, consequentemente, a uma dimensão ética do agir que contribua para a renovação de uma sociedade cada vez mais afastada de valores como a amizade, a lealdade, ou a solidariedade. Nunca é demais relembrar que a bandeira do ateísmo presente em tantas vozes, públicas ou não, é, em muitos momentos, a forma de camuflar uma desesperada busca por um divino, tantas vezes inacessível, tantas vezes indiferente, tantas vezes... ausente. Neste âmbito relembro dois autores cujo assumido ateísmo continha no seu seio o gérmen de uma espiritualidade profunda. 
Em primeiro lugar Nietzsche (não foi inocente a referência de à pouco), o homem que, em A Gaia Ciência,  declarou a morte de Deus, "Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matámos!" morte essa que não visava senão obrigar os homens a abandonar a postura passiva perante as regras impostas por um determinado tipo de moral e a superarem-se, tendo em vista um mundo sustentado num novo tipo de valores.  Onde é que eu já escrevi isto? Ops... foi no parágrafo anterior... A minha memória já não é o que era...
Em segundo lugar, e sem grandes comentários, um poema, um poema escrito por um homem que, como escreveu o seu amigo Oliveira Martins, "nem é cristão, nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinário da palavra crer":

Na mão de Deus 

Na mão de Deus, na sua mão direita,
descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita

Como a criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa,  sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Antero de Quental


























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