sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Contos da madrugada tardia... Uma experiência dos diabos... Parte II

A lei de Murphy também se aplica  no Inferno... Se algo pode correr mal... começa a correr o pior possível... logo ao princípio... Estava eu a despachar, garfada à esquerda, garfada à direita, a grande velocidade, os inúmeros elementos da fila que estavam à porta do Inferno quando...
((Olha... o estafeta diabólico...))
(O que é que ele vem aqui fazer? Porque será que se ri tanto?)
((Tenho um palpite mas vou guardá-lo para mim...))
- Ah... Ah... Ah... porteiro diabólico... Ah... Ah... Ah... Satã chama-te ao nono círculo... Ah... Ah... Ah...
- Bom dia estafeta diabólico... que imensa honra me concede Satã...
((Não exageres))
... Posso saber o que ele quer de um miserável porteiro...?
((Tens que rir também!!!!))
... Ah... Ah... Ah...Ah
- Miserável... Ah... Ah... Ah... Bem o podes dizer... Ah... Ah... Ah...
(Não gostei muito do tom com que ele disse isto...)
((Satã deve ter ficado sem lenha... Estás frito!))
(Estás a dizer isso no sentido literal ou metafórico?)
((Bem... eu gostaria que fosse apenas no sentido metafórico... mas cheira-me a que, no nono círculo, o metafórico passe rapidamente a literal e... mais... grave... a real...))
(O teu otimismo é  contagiante...)
((Estou apenas a ser realista...))
- Ah... Ah... Ah... Vamos então que ainda temos um pedaço que descer... Ah... Ah... Ah... Ah... Ah... Ah...
(Ajuda-me a arranjar um plano para escapar...)
((Quanto a escapar... sabes que eu tenho muitas saudades do meu ser na Terra... não sabes...?))
(O que é que isso importa agora... Eu também tenho e não me adianta muito... O que é que isso tem a ver com escapar... Não estás a pensar em deixar-me aqui sozinho... não?)
((Nãaaaaao... eu...?... Por quem me tomas....? Estava só a pensar que quando já estivesses na frigideira... enfim...))
(Frigideira...?)
((Sim, quando a tua pele começar a ficar estaladiça... a tua carne quase em torresmo...))
(Não te importas de me poupar aos detalhes...?)
((... ou mesmo courato... Ah desculpa... Não precisas de ficar tão sensível... estava só a... enfim... a prever os acontecimentos...))
(Dispenso as tuas previsões e esses detalhes... já bem basta... enfim...)
((Creio que percebes que não adianta muito eu acompanhar-te nessa viagem... quando o óleo atingir cerca de 400º... 500º...  ou mais... O que é que eu lá estou a fazer...?))
(Faz como quiseres... Então quando chegares à Terra e encontrares a tua pessoa...)
((Sim... Sou toda ouvidos...))
(Diz-lhe que...)
((Não vais começar com as lamechisses do costume não...? Diz-lhe que eu gosto muito dela... patati patatá... blá blá blá... São Pedro tinha razão... se querias falar comigo tinhas falado quando estavas na Terra... não é agora que caminhas para as profundezas do Inferno e estás prestes a... enfim... tu sabes... que vais querer mandar recados...))
(Quem é que está a mandar recados...? Acho que andas um pouco esquecida também... Que hipóteses me deste  de falar contigo na Terra...? Como é que querias que eu te dissesse o que quer que fosse? Por telepatia...?)
((Um verdadeiro cavalheiro faz tudo para alcançar os seus objetivos))
(Um verdadeiro cavalheiro não anda a forçar situações para falar com uma senhora... mais a mais no teu caso... em que estavas sempre protegida e... nunca abandonavas a tua zona de conforto...)
((Estou a ver... Querias falar comigo na tua zona de conforto...))
(Eu era um lobo solitário... Não tinha zona de conforto... Quando muito falaria contigo na Terra de Ninguém...) 
((Morreste aborrecido comigo?))
(Aborrecido...? Não... Um poucochinho triste... Acho que as coisas podiam ter sido diferentes...  Nunca te teria exigido nada... Estava disponível para aceitar apenas o que me pudesses dar... )
((E terias sido feliz se eu te desse assim tão pouco?))
(A felicidade não se espera... nem se busca... vive-se... em função da felicidade do próximo... Ninguém pode dizer que é feliz fechado no seu "eu"... A nossa felicidade depende da forma como procuramos fazer os outros felizes... mesmo nos pequenos detalhes... A felicidade está ao alcance de uma palavra de conforto... de um gesto de ternura... de um olhar cheio de amor... A minha felicidade não dependeria nunca  do que tu me desses mas... da minha capacidade para te fazer feliz... Eu era feliz a tentar fazer-te feliz... )
((Por isso é que nunca deixaste de me ir ver... nem de escrever para mim... mesmo não sabendo se eu  te lia....))
(Exatamente... Ia ver-te porque sentia que te fazia feliz saberes que te tinha ido ver... Mesmo custando-me tanto a forma como me ignoravas... Mas o importante não era eu... eras tu...  E...podia ser que em qualquer texto, em qualquer frase, em qualquer palavra, te conseguisse fazer feliz... Se me lesses... claro...  Mas isso agora não interessa... O que interessa é...)
((Já estamos no terceiro círculo... Olha está ali o cão de três cabeças... meio dragão... e cauda de serpente... Como se chama ele...? Se isto aqui é assim nem quero imaginar lá para baixo...))
(O cão chama-se Cérebro... Que quantidade de lama para aqui vai... Já viste aqueles ali ao fundo completamente tapados de lama... Acho que foram políticos e governantes... Um com nome de filósofo e outro de ruminante...
 ((Só mais uma pergunta...)
(O quê?)
((Houve algo que lamentasses mesmo não ter feito antes de morrer?))
(Houve... Lamento nunca ter tido a oportunidade de te dizer, pessoalmente, o quanto te amava...)
((Então tens...)
(Acabou a conversa... O que interessa é  quando chegares lá abaixo dizeres alguma coisa interessante sobre mim a ti... e não lhe digas o que realmente aconteceu... seria péssimo aquela lindíssima senhora pensar em mim como... sei lá..)
((Torresmo...?))
(Importas-te...?)
((Desculpa... é só porque acho que te deves ir habituando à ideia...))
(Olha... Diz apenas à tua pessoa que... enfim... sofri... )
((Um escaldão...)
(Não... uma... metamorfose...)
((Metamorfose...? Só...))
(Só... não é necessário dares mais detalhes que enfim... não dignificariam muito a minha imagem perante ti...)
- Ah... Ah... Ah... Despacha-te porteiro diabólico... Satã não gosta muito de esperar... Ah... Ah... Ah... Entra na barcaça para atravesssarmos o rio... Ah... Ah... Ah...
((Que rio é este?))
(É o rio da Ira... no quinto círculo... onde foram lançados todos os que deixaram que a ira, a raiva e o rancor lhes guiassem a vida... Não podemos cair da barcaça senão somos logo puxados para a lama das profundezas...)
((Não creio que tenhas que te preocupar com isso...))
(Porquê?)
((Porque creio que Satã tem um prato.. desculpa... queria dizer plano... especial para ti... Nunca iria deixar que ficasses preso na lama...))
( Pois... Estamos a chegar ao sexto círculo, à cidade de Dite, e ainda não arranjámos uma forma de sair daqui... Está um calor...)
((Deve ser do fogo que cerca a cidade... ainda por cima... com estes portões vermelhos de ferro... Não admira que tantos anjos aqui tenham caído... A propósito de calor deixa-me dar-te um conselho...))
(Sim...)
((Quando estiveres enfim... na... frigi... sabes onde... ou queres que te diga...  mesmo))
(Não... dispenso... o que é que acontece aí...?)
((Não gemas... não grites... não implores... Sofre em silêncio....))
(Realmente é um conselho que é fácil de dar... especialmente por quem... entrementes... vai dar um salto à Terra...)
((... gritos, gemidos, ares aterrorizados e pedidos de clemência... é tudo quanto Satã adora... tenta não caíres nesse erro))
(Estás-me a dar uma ideia...)
((Sim...?)
(Sim... Há muitos anos... levei uma seca sobre tubarões... Foram umas boas 3 ou 4 horas...)
((Tubarões...?))
(Tudo começou quando o indivíduo que estava comigo gritou a plenos pulmões: "Tubarão de fundo")
((Estavam na praia...?))
(Não, estávamos num café...)
((Num café...? E apareceu um tubarão...? Tens a certeza que o teu cérebro reage bem a temperaturas elevadas?))
(Apareceu na televisão de um café...)
((Ahhhhhhhhhhhh... Já podias ter dito...  eu estou a achar muito interessante estares a um passo de cair na frigideira e preocupares-te com tubarões... São eles que te vão tirar daqui suponho... vais assobiar e um cardume de tubarões invade o Inferno... Ah Ah Ah))
(Não... ouve-me... lembro-me de um momento que achei particularmente caricato e que me veio agora à ideia... O senhor em questão recusava-se a ir à praia por causa dos perigos que lá podiam existir, como... tubarões... E disse-me "Você que adora praia nem sabe o perigo que corre... Imagine que está a nadar e que a 15 metros vê a barbatana de um tubarão...O que faz?" 
"Nado rapidamente em direção à areia!!!" 
"Acabou de virar filete...", )
((Então ele podia chamar-te filete e eu só por referir um miserável torresmo... ficaste todo ofendido...))
(O contexto era outro, como é óbvio... mas voltando ao que interessa... O indivíduo disse-me com o ar de quem me vai dizer o segredo do cofre: "Só tem uma hipótese de se safar: Os tubarões são quase cegos... vivem com base em percepções sensoriais...")
((Isso é interessante. Estou a começar a perceber como te vais safar... percepções sensoriais... gosto disso... mas tens que desenvolver a ideia, claro...))
(A tua ironia está cada vez mais refinada... O senhor disse-me então: "Tem que inverter o reflexo condicionado de Pavlov...")
((Pavlov... Como é que não me lembrei dele... (ah ah aha)  Vamos pedir ao Pavlov para nos ajudar... Sabes em que círculo ele está... partindo do princípio que está aqui no Inferno... claro...))
(O reflexo condicionado de Pavlov é um reflexo aprendido por todos os animais (nós incluídos) que é condicionado pelo meio. Por exemplo, se tocares uma campainha a um cão sempre que lhe fores dar comida ele associa sempre o som da campainha a comida e começa logo a lamber-se... cada vez que ela toca... mesmo que não lhe vás dar o referido manjar... )
((Então tu estás a pensar não tocar a campainha (ah... ah... ah) quando Satã te quiser atirar para a frigideira...))
(A ideia do senhor era: com base nesse reflexo condicionado, sempre que o tubarão sente um volume, com um peso balizado entre os 40 e os 130 Kilos, determinado cheiro e a afastar-se rapidamente dele interpreta-o como comida)
((Sim... já percebi... vais...  perder peso...))
(A ideia era fazer exatamente o contrário. Em vez de me afastar dele, devia nadar rapidamente em direção ao bicho e, quando lá chegasse, esbofeteava-o violentamente...)
((Esbofeteavas o tubarão... (ah... ah...ah)??? E ele fugia apavorado... não? (ah...ah... ah)))
(Não... andava em círculos até perceber se eu era ou não comida... Era a minha oportunidade para escapar...)
(( Portanto... estás a pensar... esbofetear Satã... assim que chegares ao nono círculo... Como é que achas que ele vai reagir? Vai andar em círculos como o tubarão...? (Tss Tss... Tadinho... o calor está mesmo a afetar a cabeça deste pobre coitado... Ou então é o medo... Tubarões... que se deixam esbofetear... do que ele se havia de lembrar agora...)))
(Não estou a pensar em esbofeteá-lo... Quando os pecadores chegam lá abaixo vão sempre lívidos de medo, aterrorizados, implorando clemência... como tu aliás disseste...)
((Sim... mas tu...))
(Eu vou suspender a saliva de Satã porque vou entrar a rir ás gargalhadas... AH AH AH...)
((Belíssima ideia... e...))
(E... o quê?)
((E ficas a rir durante quanto tempo...? Ou estás a pensar  ficar o resto da eternidade a competir com Satã a ver quem gargalha mais alto...?))
(Tinhas que estragar o meu plano... mas tens razão... tenho que ter uma justificação... Já sei... Vou-lhe falar da seta e de todos virem para o Inferno... A cara de terror que todos, especialmente os bons, fazem...) 
((Esse é um bom  argumento... não sei é se o convences...))
(É a única forma... que calor... estamos no oitavo círculo... os fossos... olha para o quinto...)
(( Aquela gente toda a tentar manter a cabeça fora do molho do caldeirão... Achas que... eventualmente... em vez da frigideira... tu...))
(Não... não acho nada... estamos a chegar...)
((Ai... ai... o que te irá acontecer... Não tens mesmo nada para me dizer...uma espécie de testamento sentimental...?))
(Não... nesta altura... já nada há para dizer... lá estão os gigantes à entrada do nono círculo... aconteça o que acontecer estarás sempre no meu coração...porque do meu pensamento já sei que te vais baldar...)
((Snif... snif... Isso só irá mesmo acontecer quando a tua pele ficar...))
(Pronto... Pronto... Já percebi quando... só mais um pormenor... não sei se consigo continuar a escrever depois de entrar no nono círculo...)
((Pois... tens razão... com aquela temperatura o ecrã derrete... Acho que o meu ser na terra vai ficar triste... mas...))
AH AH AH AH
((... Olha... já se ouvem as gargalhadas de Satã... Tens que começar também...))
AH AH AH AH
((Mais altas e mais sarcásticas...))
AH AH AH AH ...







PS: A descrição dos sucessivos círculos do Inferno é retirada da obra de Dante Alighieri (1265-1321),  A Divina Comédia

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