Nos momentos que antecedem a subida que nos levará a Santarém chego um pouco à frente do grupo... Algumas dezenas de metros apenas... e fico com a visão total de toda a coluna. É um exercício que gosto de fazer de quando em vez... Observar o grupo enquanto tal, serpenteando estrada fora, e simultaneamente, cada um dos Caminhantes em particular, não na sua identidade específica e representável por um nome e uma personalidade, mas na sua condição de homem (em sentido lato), crente convicto em Nossa Senhora.
Olhando para vós, determinados no esforço, firmes na crença, inabaláveis na fé, vêm-me à mente todo aquele conjunto de argumentos que, de vários quadrantes, questionam a missão espiritual de quem empreende esta (ou outra) peregrinação.
Por um lado, agnósticos (aqueles que alegam a impossibilidade de provar, ou não, a existência de Deus) e ateus (os que negam a Sua existência) apontam para a incoerência desta missão. "Se Deus existisse, e tal pudesse ser provado, jamais permitiria esse tipo de sacrifício", afirmam os primeiros. "Que Deus é esse que vos pede tamanho sacrifício?" zombeteiam os segundos.
Por outro lado, uma corrente mais ortodoxa considera que este tipo de movimento apenas é verdadeiramente genuíno, apenas faz sentido enquanto trabalho espiritual de fundo, a quem cumprir os ditames prescritos pela Igreja Católica em toda a sua extensão. Creio que esta radicalização do discurso também não se aplica ao sentimento generalizado de quem se propõe a fazer este tipo de percurso espiritual. Cada um dos milhares de peregrinos que percorrem as estradas portuguesas, rumo a Fátima, tem uma relação muito própria, e por isso mesmo, única, com Deus. Estando ou não de acordo com o que é preconizado pela Igreja Institucional (e uma percentagem muito elevada desses peregrinos cumpre esses pressupostos by the rules) o importante é que essa forma de relacionamento lhes permita uma maior aproximação ao divino e, consequentemente, a uma dimensão ética do agir que contribua para a renovação de uma sociedade cada vez mais afastada de valores como a amizade, a lealdade, ou a solidariedade. Nunca é demais relembrar que a bandeira do ateísmo presente em tantas vozes, públicas ou não, é, em muitos momentos, a forma de camuflar uma desesperada busca por um divino, tantas vezes inacessível, tantas vezes indiferente, tantas vezes... ausente. Neste âmbito relembro dois autores cujo assumido ateísmo continha no seu seio o gérmen de uma espiritualidade profunda.
Em primeiro lugar Nietzsche (não foi inocente a referência de à pouco), o homem que, em A Gaia Ciência, declarou a morte de Deus, "Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matámos!" morte essa que não visava senão obrigar os homens a abandonar a postura passiva perante as regras impostas por um determinado tipo de moral e a superarem-se, tendo em vista um mundo sustentado num novo tipo de valores. Onde é que eu já escrevi isto? Ops... foi no parágrafo anterior... A minha memória já não é o que era...
Em segundo lugar, e sem grandes comentários, um poema, um poema escrito por um homem que, como escreveu o seu amigo Oliveira Martins, "nem é cristão, nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinário da palavra crer":
Na mão de Deus
Na mão de Deus, na sua mão direita,
descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita
Como a criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Antero de Quental
Em primeiro lugar Nietzsche (não foi inocente a referência de à pouco), o homem que, em A Gaia Ciência, declarou a morte de Deus, "Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matámos!" morte essa que não visava senão obrigar os homens a abandonar a postura passiva perante as regras impostas por um determinado tipo de moral e a superarem-se, tendo em vista um mundo sustentado num novo tipo de valores. Onde é que eu já escrevi isto? Ops... foi no parágrafo anterior... A minha memória já não é o que era...
Em segundo lugar, e sem grandes comentários, um poema, um poema escrito por um homem que, como escreveu o seu amigo Oliveira Martins, "nem é cristão, nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinário da palavra crer":
Na mão de Deus
Na mão de Deus, na sua mão direita,
descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita
Como a criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Antero de Quental
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