Entre a primeira placa a anunciar o Vale de Santarém e a chegada ao restaurante ainda medeiam alguns quilómetros, que são percorridos em função do timing de chegada previamente combinado. Normalmente, como este ano, não estamos atrasados, pelo que o ritmo é pausado, o que nos permite, por um lado, apreciar a paisagem em redor e, por outro, que o grupo fique mais compacto e chegue praticamente todo junto para tomar a sempre desejada refeição.
Relativamente à paisagem que o nosso olhar vai encontrando e, para além da múltiplas variedades de espécies que compõem a flora local, não podemos deixar de reparar no toque exótico que os inúmeros ninhos de cegonha conferem ao ecossistema. O seu porte altivo, os seus movimentos graciosos, o seu olhar protetor tornam a cegonha uma figura singular no mundo animal.
Ao longo dos séculos muitas têm sido as simbologias associadas à cegonha. Apesar da sua referência, quase irrelevante, no Antigo Testamento (Levítico, 11:18-19, Zacarias 5:9, Jeremias 8:7, entre outros), remonta já à antiguidade dos tempos a lenda, segundo a qual ela traz no bico os recém-nascidos. Esta lenda tem muito a ver com as suas caraterísticas de ave migratória, cujo retorno está normalmente associado ao despertar da Primavera.
Pese embora, ao longo dos tempos, em algumas regiões do globo, a cegonha estar associada a costumes mais bárbaros (nunca confirmados) foi, na Europa Medieval, o símbolo por excelência da piedade familiar, pelo carinho e atenção com que trata as aves mais velhas ou doentes e, no Extremo Oriente foi, por diversos povos, conotada com a imortalidade.
Uma lenda antiga, tão antiga que, entre os antigos, apenas os mais antigos a contavam como eu a conto, cujas origens remontam ás regiões desérticas do sul de África, e cujos ecos chegaram já muito esbatidos aos tempos de hoje, por tradição oral, conta que, na região onde se situa atualmente o Deserto do Kalahari, viveu uma princesa de nome desconhecido, que nos momentos que antecediam e sucediam a aurora, entoava belas arias astrais, com tal sentimento que, bandos de cegonhas totalmente brancas, ligeiramente retocadas de azul, atravessando os círculos de Kemmer, voavam em torno do oásis real, desenhando, no firmamento, figuras fabulosas que, milhares de anos mais tarde, iriam ser simbolicamente representativas, como harpas tocadas por Eros, o Gladdag celta ou colar inca da fertilidade.
Esta princesa era dotada de uma tal beleza que, naqueles momentos, Eos, ao abrir as portas do céu, imediatamente se recolhia no seu interior, ofuscada pela fascinante combinação entre o belo e o sublime (canto). Todos os habitantes do deserto, dos mais ínfimos vermes, aos implacáveis bandos de salteadores sentiam o coração revigorar-se ao escutar tão cândida voz a ecoar pelas areias ainda cálidas do amanhecer... Um desses habitantes, um nómada que vagabundeava entre dunas, com aparência duvidosa, teve a ousadia de se aproximar do oásis real, num desses momento de aurora e, ao fazê-lo, ficou absolutamente fascinado pela princesa cujo nome se desconhece. Tal fascínio levou-o, durante anos a fio, a procurar uma brecha nas linhas de proteção do oásis real, para poder declarar à linda princesa o quanto o seu coração batia por ela, o quanto ele desejava partilhar tão nobre sentimento. Debalde... jamais o conseguiu e... quando a oportunidade eventualmente surgia... a segurança era tão apertada que... logo desaparecia (a oportunidade... claro)... Desesperado, o vagabundo entrou em greve de frio... de fome... de cansaço... mas jamais lhe foi concedida a graça de um olhar, ... de um sorriso... de uma palavra... Já o seu corpo velho e debilitado era perseguido por bandos de abutres ansiosos por o degustar... embora debilitado o seu corpo ainda tinha alguma chicha... quando um bando de cegonhas, em voo picado o içou das areias ardentes e o transportou para terras distantes onde o seu coração iria esquecer a linda princesa sem nome...
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