O percurso matinal, neste terceiro dia, não apresentou grandes problemas em termos de desníveis do terreno. Uma ou outra subida mais pronunciada mas nada que, de facto, mexesse na condição física de cada um dos Caminhantes... Isto não significa que todos estivéssemos fisicamente no auge ou que alguns de nós não estivéssemos a atravessar um processo de sofrimento físico... Simplesmente o sofrimento tornou-se de tal forma companheiro... de tal forma inquilino do nosso ser... que já o levamos connosco quase sem dar por isso... Esse sofrimento tem múltiplas formas e surge em qualquer momento... mesmo o mais inesperado... Uma bolha, um corte, uma unha que encrava, um joelho sem vontade de se mexer muito, a ameaça de um súbito movimento intestinal irresistível, enfim, são inúmeras as suas possíveis origens. Muitas vezes é um sofrimento por antecipação... Não que a dor da unha, do joelho ou o movimento intestinal seja já insuportável ou irresistível. Simplesmente a nossa mente tende a antecipar o momento em que o será e a dúvida instala-se: "Será que aguento até lá?"... Aguenta sim... Todos aguentamos...
O frio da madrugada ainda resistiu ao amanhecer e aos primeiros raios de sol... Com o avançar da manhã foi pregressivamente substituído por temperaturas mais amenas e pelo azul de um céu rejuvenescido... Dir-se-ia que após a fantástica experiência da madrugada o firmamento redescobriu novas e mais sublimes tonalidades de de azul, todas elas em torno do seu casamento com o branco... A paisagem à nossa volta, selvagem e agreste, relembrava-nos a potencialidade autoregeneradora da Natureza, indiferente à fúria destruidora da ação humana em busca de riqueza, ainda que à custa de novas e mais sofisticadas formas de exploração e contaminação de recursos. Aquela potencialidade da Natureza, expressa na expontaneidade com que todo o conjunto de plantas silvestres brotam do solo... Olhai... o tojo... a beldroega... o alecrim... a carqueja... Quanta força.. quanto poder... quanta vontade de ser... A expressão máxima do virtuosismo da ação criadora de Deus no seu momento primeiro... Espantoso... Como seriam atuais as palavras de Mateus e de Lucas: "Olhai as silvas e as murtas, ali... logo a seguir à Portela da Padeiras... elas não trabalham nem fiam, mas nem o próprio Salomão no auge da sua glória se vestiu elas." Sim... Espantoso... O que me leva, muitas vezes a questionar como é possível que o mesmo Deus, capaz de criar uma obra como esta, esteja tão distraído nos momentos em que cometem as maiores patifarias, as maiores atrocidades, as maiores barbáries... que assobie para o ar quando o lado mais tenebroso da natureza humana cavalga desenfreado pela sua Criação... É, de facto, estranho... Nos momentos em que é mais necessário... Como diz uma da Caminhantes: "Lamento que quando mais Dele necessito e por Ele chamo... Deus esteja a dormitar... ou mesmo... profundamente adormecido..." Eu iria mais longe... Será que Deus não tem a plena consciência da sua divindade e consequentemente do seu poder...? Será que Deus não sabe que é Deus e que o seu poder em prol da sua Criação pode e deve ser usado? Será essa uma das causas da Sua Encarnação, ou seja, será que Deus necessitou de encarnar para perceber quem não é, e ganhar consciência de quem é? Se assim foi o resultado ficou aquém das expetativas... O Teu Filho padeceu uma agonia atroz, morreu da morte mais indigna, pregado num madeiro... para que ... tudo continue na mesma...? Sim, claro a Nova Aliança... mas a Nova Aliança parece-me curto para tanto sofrimento... Será que... depois de assistires ao sofrimento do Teu Filho não te passaste a preocupar um pouco mais com o que se passa cá em baixo...? Pois... Já vi que não... Como é que consegues ficar indiferente ao pranto daquela mãe cujo filho morre de fome nos seus braços? Como é que consegues assistir, de braços cruzados ao massacre de povoações inteiras, no Ruanda, na Bósnia, em El Salvador, no Cambodja e em tantos outros lugares do mundo...? A tua inação faz-me por vezes lembrar as palavras do Poeta... "A Criação é obra de um Deus enlouquecido... Tudo é riso, loucura e morte..." Como podes fingir que não vês aquele ancião a ser desprezado, maltratado e humilhado pelo próprio filho? Porque é que nem sequer respondes aos que, com as lágrimas a correr pela face, te imploram pela vida do ente querido... ou apenas um pedaço de pão? Será que não vês as tuas igrejas cada vez mais vazias e o Santuário de Fátima cada vez mais cheio...? Será que ainda não percebeste que ao contrário do Teu silêncio indiferente e da Tua ausência permanente, Nossa Senhora está sempre connosco, falando, aconselhando, sugerindo... explicando? Será que... Deixa para lá... Sugiro-Te apenas que leias a obra de um teológo chamado Karl Ranher cujo título é "Apelos ao Deus do Silêncio..." tenta responder apenas um desses apelos... Pelo menos um...
Ao longo da manhã fomos passando por diversas povoações. Portela das Padeiras... pequena povoação da freguesia de S. Salvador, cujos habitantes vivem basicamente da terra, da produção de cereais, azeite e vinho. Uma das localidades, das lezírias, permanentemente preocupada com o aumento de caudal do Tejo e as inundações que daí derivam... Reza a lenda que na origem do nome está o facto de, em tempos remotos, existir na zona, um antigo domínio senhorial. A esposa do senhor feudal encontrava-se frequentemente de esperanças (recordo que, na altura, pequenas distrações como televisão, computador, internet, ou mesmo verdade e consequência não existam) e um ponto comum a esses estados era o seu desejo de pão acabado de sair do forno... Para satisfazer esses desejos o esposo mandou construir uma série de fornos onde eram cozidos os mais delicioso pães de trigo, milho e centeio... Manhã cedo, assim que se levantava (de facto não se levantava muito cedo...) e sentia o delicioso cheiro do pão acabado de fazer ia à janela e gritava a plenos pulmões: "Manueeeeeeeeeela das Padeiras"... Dª Manuela era a chefe das padeiras que assim que ouvia a senhora gritar... corria imediatamente para o domínio senhorial entregar o pão acabadinho de fazer... A grande questão é que o povo, com algumas dificuldades auditivas, percebia, não Manueeeeeeela, mas sim Porteeeeeela...pelo que o lugarejo veio a ser baptizado como Portela das Padeiras... Quem não achou graça nenhuma, naturalmente, foi Dª Manuela que perdida a possibilidade de ver o seu nome imortalizada numa placa de início de povoação, procurou pôr fim aos seus dias através de um mergulho convicto num enorme alguidar de farinha de trigo, sendo salva, no último momento por um destemido cavalheiro que vendo-a assim, tão alva por ela se enamorou e... foram felizes para sempre... claro...
Esta manhã foi, de facto, tranquila... O fresquinho da madrugada ajudou-nos a andar mais depressa pelo que, estávamos adiantados no timing de chegada a Pernes... razão pela qual fazemos aqui mais uma pequena paragem... e já seguimos viagem...
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