Peregrinação a Fátima 2013 - Segundo dia - II

A partir do Cartaxo o percurso tornou-se mais fácil. A tendência é para descer, uma vez que iremos almoçar ao Vale de Santarém. O grupo segue agora numa fila pouco indiana, com os Caminhantes a partilharem memórias, experiências e conhecimentos... Nesta altura o estado de espírito do grupo é outro... A tensão do primeiro dia desapareceu e apesar de nem todos  estarmos fisicamente nas melhores condições o futuro imediato já é encarado numa perspetiva mais otimista e mais favorável, até porque as caraterísticas do terreno também ajudam... Descer... aparentmente custa menos do que subir... Recordo-me do tempos em que me gritavam aos ouvidos: "Descer não é para descansar... é para acelerar..." Pessoalmente prefiro subir... As dores... enfim... as dores continuam a apoquentar grande parte dos Caminhantes... mas ser Caminhante é exatamente tolerar a dor, conviver permanentemente com ela... e, ainda assim,  sorrir... crer... viver... amar... como se ela estivesse ausente... Refiro-me à dor física... naturalmente... aquela que afeta um determinado membro/órgão do nosso corpo... não à dor ética...  à dor interior... aquela dor que nos engole como um todo e... lentamente... muito lentamente... nos angustia... nos corroi... nos consome... nos destroi...  Aquela dor que surge no silêncio da noite escura, nos rasga o coração... o dilacera... o esquarteja... e o faz verter lágrimas adocicadas... de sangue... Existem, de facto, dois sentimentos que não se podem partilhar... a dor... e a... culpa... Quantos de nós já os sentimos em simultâneo... Quantos de nós já chorámos amargamente por decisões éticas que se perderam na voracidade maldosa que emana da natureza humana... Quantos de nós, em determinadas situações, já sentimos uma vontade infinita de gritar de... impotência... de... raiva... de... dor... mas, como diz o Poeta, "Os gritos da dor infinita não se ouvem... Os sons morrem no vácuo..." Eu... não tive a culpa... mas sou culpado... Dói tanto... Adiante...

O terreno vai agora inclinando cada vez mais. Ainda que com uma ou outra paragem não programada, para reunir novamente o grupo, que aqui e ali se vai fracionando, em pouco tempo chegamos a Vila Chã de Ourique, povoação situada a poucos quilómetros do Cartaxo e onde  se produz o vinho com o nome da capital do concelho. Vila Chã de Ourique está envolvida numa polémica histórica/lendária, que tem a ver com o local onde terá acontecido a célebre Batalha de Ourique, na qual, D. Afonso Henriques, após ter recebido uma visão de Cristo, garantindo-lhe a vitória na batalha, terá derrotado cinco reis mouros. Os historiadores dividem-se entre esta localidade a vila de Ourique no Alentejo. 

Com Vila Chã já pelas costas rumámos ao Vale de Santarém em ritmo ligeiro, sem grandes pressas, uma vez que estávamos um pouco adiantados em relação ao timing de chegada. Por isso mesmo deixámo-nos envolver pelo ambiente que nos rodeava, caraterizado pela simbiose entre o verde da vegetação e o azul do céu, mediado pela presença exuberante de casais de cegonhas e dos seus ninhos, construídos, muitos deles, num desafio claro aos princípios do equilíbrio e da gravidade. É realmente notável a forma como estas aves migratórias tecem os seus ninhos, apenas com paus, em locais onde a racionalidade geométrica humana jamais aconselharia... Sobre o Vale de Santarém ninguém consegue acrescentar muito mais ao que Almeida Garret escreveu em Viagens na Minha Terra, e que não resisto a citar. Quem sabe se após relermos esta passagem, para o ano que vem não estaremos muito mais atentos ao Vale de Santarém e à sua paisagem:

"O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela Natureza, sítio ameno e deleitoso, em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: ali não há nada grandioso nem sublime, mas há como que uma simetria de cores, de tons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego de espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali, um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilanezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Eden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade no seu coração."

Noutras circunstâncias aproveitaria este extrato de Garret para desenvolver a referência ao Eden, dando-lhe um cunho pessoal. Não o vou fazer e aproveito para fazer um pequeno esclarecimento. A presença da serpente num dos textos anteriores, rememorando a caminhada até Vila Nova da Raínha, não teve qualquer pressuposto de índole físico/sexual implícito. Limitou-se a ser aquilo que considero imprescindível à existência de um qualquer princípio universal, ou seja, a diferença do outro em relação ao mesmo (sempre-o-mesmo no Eden Bíblico é absolutamente infecundo, estéril, desinteressante...). A serpente representa esse principio em grande parte das grandes cosmogonias, e não apenas na judaica-cristã. É a figura simbólica por excelência ligada a uma eternidade não estática, a um sempre eterno retorno, ainda que não um retorno ao mesmo, mas em novas formas de re-começo ou metamorfose. Relembro, por exemplo, que no antigo Egito a serpente Ouroboros que morde a sua própria cauda, era um símbolo de um eterno recomeço. Na mitologia nórdica, a serpente Midgad rodeia a Terra, como um símbolo da ameaça permanente à ordem no mundo. No culto do deus da medicina da tradição grego-romana, a serpente do bastão de Escelápio (Asclépio) era símbolo de auto-renovação permanente e no budismo tântrico tibetano o despertar da serpente Kundalini representa uma das etapas decisivas da realização espiritual. Isto significa que a eventual união do novo Adão com a nova Eva, antes de ser física teria que ser sentimental, espiritual, emocional e afetiva. O físico seria apenas o culminar de um longo processo de aproximação, já a juzante do Éden... Este último parágrafo não faz parte da Peregrinação a Fatima, mas, por via das dúvidas, achei que seria importante, como esclarecimento... Just in case... E agora... que chegámos ao Vale de Santarém... vamos almoçar.. Até logo...