sábado, 6 de julho de 2013

Peregrinação a Fátima 2013 - Quarto dia - I

O quarto dia começou da mesma forma que findou o terceiro,  ao som sibilino do vento que nos açoitava o espírito antes mesmo de o sentirmos na pele. Através da porta-sempre-aberta do ginásio era possível perceber  a força com que o deus Éolo soprava. Nada que intimidasse os Caminhantes que, três horas e meia depois do início do novo dia, já se preparavam para a jornada que aí vinha. Uma vez mais tudo correu com civismo e educação na partilha dos espaços, fossem eles os de descanso ou de higiene. Arrumados, os sacos foram sendo levados para o exterior e colocados no carro de apoio. Assim que atravessámos a porta-sempre-aberta, logo percebemos que o princípio do dia não ia ser fácil. O vento soprava muito forte, arrastando com ele um tipo  de frio que se entranhava em cada pedacinho de pele e perfurava, rapidamente, até aos ossos... Brrrrrrrrrrrr... Há que tapar todos as possíveis vias de entrada do frio... Camisolas, cachecóis, gorros, luvas... e prepararmo-nos para este tempo verdadeiramente invernoso... Desculpem vou-me refugiar um pouco dentro do ginásio porque isto está mesmo terrível...
- Olhe, o senhor desculpe... então e aquela conversa sobre partilharmos o que a Natureza  nos oferece... blá... blá... blá...?
- Oba... pois... não pode fingir que não leu isso...?
- Não... claro que não... 
- Ok... então fico cá fora...  Brrrrrrrrrrrrrrrr... Que friiiiiiiiiiiiiiiiiiiiio...
Com o carro de apoio carregado seguiu-se, como habitualmente, a oração da manhã, recitada pela voz harmoniosa da Dª Ermelinda e pouco depois estávamos na estrada, mas por pouco tempo... Não, não... Não foi o frio nem o vento que nos fez voltar atrás... Nós é que parámos num café próximo para tomarmos o pequeno almoço... O ambiente dentro do café estava muito mais acolhedor e, entrementes, cheguei a pensar se algum dos Caminhantes não se recusaria mesmo a sair no final da refeição... Se bem me lembro estava a dar, na SIC Notícias, uma reportagem sobre a venda, pelas próprias famílias, de raparigas afegãs de tenra idade, aos traficantes de droga, a única forma de subsistência e sobrevivência dessas mesmas famílias... O que é que nós, mundo ocidental e, supostamente, civilizado, andamos a fazer, por lá e por cá,   que não
somos capazes de, pelo menos, tentar acabar com aquele tipo de tragédias...? O que andamos a fazer...? A assobiar para o ar, a fingir que não damos por isso... "Isso é lá entre eles... É tradição... é cultural..." Desculpe? Disse "tradição... cultural"? Tradição cultural semelhante à barbárie da mutilação genital feminina... que fingimos não saber que é praticada mesmo nas nossas barbas...? Enfim... adiante...
Ao ambiente acolhedor do café seguiu-se  o frio agreste da estrada. Estava, de facto, muito frio, muito mais do que na madrugada anterior, com a agravante de estar acompanhado por um forte vento contra, também ele muito frio... diria mesmo... gelado. Estas terríveis condições atmosféricas não perturbaram, nem amedrontaram, os Caminhantes que se fizeram à estrada com o mesmo querer, a mesma vontade, a mesma fé...
Após os primeiros passos, à saída de Alcanena, percebemos que o clima tendia a piorar... O frio tornava-se glacial... enregelando músculos, tendões e articulações... Os ossos congelavam... e as próprias cordas vocais tinham dificuldade em se articular como voz para produzir sons... Como se estes (sons) solidificassem ao contacto com o ar gélido da madrugada... Cada passo obrigava a um esforço redobrado... por vezes titânico... para conseguir levar de vencida o vento contrário... Vento que soprava cada vez mais forte à medida que nos aproximávamos da Serra de Aire... No sopé da serra sentiamo-lo mais poderoso, mais agudo, mais agressivo... Os Caminhantes abanavam com a força eólica que se manifestava em  sentido oposto... O seu movimento parecia hesitante... Parecia...mas não era... De cabeça baixa, para diminuir a silhueta, persistiam, passo a passo, metro a metro, sem vacilar na sua coragem, na sua convicção, na sua fé...    O vento anunciava-se, já não através de um silvo cortante, mas de um uivo, simultaneamente, aterrador e padecente... Dir-se-ia que provinha da garganta desesperada de uma qualquer entidade no limite das suas potencialidades... O vento... o frio... Há que os receber em nós... Dar o peito ao vento... libertar a mente... perceber a espiritualidade do momento... Escutar... Sim... Escutar...  Por entre o fumo cinzento expelido pelo frio e o uivo silvante gritado pelo vento... escutai:


Sou o espírito oculto desta montanha
A sua força interior, a sua essência...
Sinto no ar uma emoção estranha
Sem que para tal encontre qualquer ciência

Ouço passos a ecoar no meu interior
Vultos desenhados no sopé da serra
Quem sois ... gente de condição inferior
Que ousais perturbar a ordem desta terra?

Contra vós lanço os elementos da Natureza
Do frio que corroi ao vento que corta
Para passardes a soleira da minha porta
Tereis que mostrar toda a vossa fortaleza...















Espírito oculto desta montanha tão bela
De cujas veredas és o antigo guardião
Não temas jamais a presença singela
De quem apenas leva amor no coração.

Sob muitas luas, sem receio, caminhámos
Com esforço, tenacidade e sofrimento
Léguas e léguas, sem conta, palmilhámos,
Em nome de um querer, uma vontade, um sentimento... 

Enfrentaremos sem temor, o frio, a chuva e o vento
Até alcançarmos... lá longe... a Cova da Iria,
Para, com júbilo, respondermos ao chamamento
Da Mãe de Deus e nossa Mãe... Maria...


































































































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