Ao fim de algumas décadas de existência, quando começamos a olhar a vida, o mundo, enfim... o nosso próprio ser, de uma outra forma, impõe-se a necessidade de fazer um balanço ao que fomos, ao que temos, ao que somos, perspetivando, eventualmente o que seremos. Este balanço pode ser realizado de múltipla formas, de um fôlego só, do tipo "já está", ou em diversos momentos espaçados no tempo. Seja qual for a modalidade adotada, ela supõe, sempre, um auto-retrato. Assim decidi começar a esboçar o meu auto-retrato a partir de uma auto-análise à minha posição/situação de ser-no-mundo. Esta auto-análise é completamente independente de quaisquer relacionamentos em concreto, que diariamente mantenha nos diversos domínios seja ele privado, profissional, institucional ou macro-estrutural (oba, onde é que eu já li isto????). Tal significa que tudo o que é escrito neste artigo não pretende pôr em causa nada nem ninguém. É apenas a expressão da minha relação com o Cosmos, a forma como interiormente me sinto em relação ao que realmente "faço aqui". Nessa medida, sendo absolutamente sincero, tenho que assumir a condição de peregrino errante pelas estradas empoeiradas do Universo, em busca sabe-se lá de quê... ou de quem... Sentido essa como a minha verdadeira condição, o auto-retrato teria que ser desenhado a partir de um movimento errante e que melhor errância do que aquela que me levou a um percurso nómada, pelas franjas da sociedade "civilizada". Fiz-me à estrada e deixei-me cair na condição de sem-abrigo. Foi um percurso a solo, recorrendo única e exclusivamente à minha rusticidade, à minha capacidade de adaptação ao meio e à determinação que lhe está subjacente.
Não tenho grandes histórias para contar relativamente ao percurso em concreto, no terreno. Não procurei confrontos, testei apenas, em alguns momentos situações-limite. Por exemplo, parar em frente a uma mesa de uma esplanada, onde um casal tomava um frugal refeição. Fiquei a uns 5 metros da mesa, olhando fixamente, em silêncio, um dos pratos. Foram apenas meia dúzia de segundos até ambos os rabos se começarem a mexer nas cadeiras, desconfortáveis, e os braços sub-repticiamente se movimentarem em proteção dos pratos "não vá aquele maltrapilho atirar-se a eles como gato a bofe". Foi também curioso ver como as pessoas se afastavam quando me dirigia a elas, especialmente se segundos antes tinha dado um longo gole da minha garrafa de vinho (cheia de descafeinado). Foi interessante coabitar com o cheiro a lixo que, a certa altura, já quase se não sente enquanto tal. Foi ainda mais interessante ver pessoas que me conhecem relativamente bem passar por mim sem me reconhecerem (Bom dia Dª Celeste). Finalmente gostaria de referir algo verdadeiramente assustador: a infinita sensação de liberdade. Não há horas, não há regras, há apenas a liberdade de fazer aquilo que quero, quando quero, como quero. A minha mãe foi durante alguns anos a assistente social da Santa Casa da Misericórdia responsável pelos sem-abrigo de Lisboa cidade. Costumava dizer que não adiantava muito tirar um sem-abrigo da rua e entregá-lo à família ou colocá-lo num lar. No dia seguinte já tinham fugido e regressado à rua. Pois é mãe (onde quer que esteja e acredito que está onde merece), a culpa é desta avassaladora sensação de plena liberdade.
Duas breves notas finais. A primeira para referir que o símbolo que usei para este percurso nómada, para esta experiência no lado de fora das nossas casas, foi uma carta do Tarot. Eu sei que não se deve escolher cartas neste baralho. As que saem, saem. Neste caso, forcei o baralho e fui buscar a carta que queria e que estava representada na minha T-shirt: a carta XII, o Enforcado, " aquele que está enganado, perdido, desorientado..."
A última nota é um agradecimento a todas as pessoas que colaboraram comigo neste trajeto. As que me aturaram a ideia, as que me fotografaram, algumas escolhidas aleatoriamente na rua, outras nem por isso e, no fundo, a todas as pessoas que comigo interagiram, nem que fosse afastando-se e... não... não quero mesmo atirar-me a esse bife com batatas fritas... tenho que ter cuidado com o colestrol...
Parabéns pela coragem e determinação.
ResponderEliminarTenho muito orgulho em ti.
É um privilégio conviver com uma pessoa como tu.
Obrigado por fazer parte da minha vida.
Obrigado pelas tuas palavras.
EliminarUma beijinho para ti, outro à Sara, um abraço ao Dani
Gostei da ideia, e do texto. Não da reportagem fotográfica. Demasiado 'fake' e teatral. As imagens (pobres demais), matam o que o texto nos dá, a 'autenticidade' do vivido. Tem aí o começo de uma boa história, sobre si, é claro, mas sobretudo sobre a natureza humana.
ResponderEliminarBoa noite meu (minha) caro (a) leitor (a)
EliminarAntes de mais as minhas desculpas pelo atraso na resposta, mas múltiplos afazeres assim o ditaram.
Quero desde já agradecer o seu comentário e a crítica que lhe está subjacente. Todas as críticas construtivas (muito embora eu considere a sua crítica apenas construti-va) são importantes porque me permitem repensar aquilo que faço e, quiçá, caso tenha essa capacidade, elevar o nível qualitativo do meu trabalho.
Em relação à sua crítica em concreto, percebo perfeitamente o que quer dizer com a “pobreza de imagens (fotos)”, e até acrescentaria “demasiado denotativas e muito pouco simbólico-metafóricas”. Estamos de acordo. No entanto, e provavelmente vou desiludi-lo, eram mais ou menos estas imagens que eu queria obter. Algumas com um pouco mais de profundidade, sem dúvida, mas no geral eram estas. Posso explicar-lhe porquê muito sinteticamente:
Em primeiro lugar porque foi um percurso a solo, sem qualquer interação com outros sem-abrigo (por opção própria), e com muito pouca (interação) com as pessoas “normais”. Esta só aconteceu quando eu a forcei e, mesmo nessas circunstâncias, era algo de muito fugidio. Daqui resulta que as imagens que poderia obter nunca seriam muito diferentes de mim, myself, I. Poderia ter preparado outro tipo de cenários, diferentes combinações/composições? Sem dúvida, mas talvez noutras núpcias. Nestas tentei, acima de tudo verificar se era capaz de… e transpor isso para a imagem, ainda que meramente denotativa.
Em segundo lugar porque me faltou um elemento essencial que foi o apoio de alguém que me acompanhasse, permanentemente, e que, a cada momento, selecionasse as imagens em função de um trabalho mais profundo. Neste caso, a máquina andou sempre comigo e eu tinha que pedir a quem passava que me fotografasse. Muitos nem sequer se dignavam ouvir-me, quanto mais fotografar-me. Dou-lhe um exemplo. A última foto acho que é uma boa foto. No entanto seria uma excelente foto (na minha opinião, claro) se fosse tirada de outro ângulo, de baixo para cima, com apenas parte do meu rosto a surgir entre dois sacos do lixo. Mas será que será que eu podia pedir a alguém, que já me está a fazer um favor, que se deite em baixo de um contentor de lixo sobre uma simpática camada de gordura? Não me parece que ele aceitasse. Por tudo isto meu caro, estas (pobres, sem dúvida) foram as imagens que eu quis de facto, obter.
Apenas mais três notas:
EliminarO caráter fake/teatral das imagens daria pano para mangas, até porque quando é que uma imagem não é teatral? Além disso este foi um aspeto que estava implícito no percurso. Eu tinha que me caracterizar para conseguir ganhar a imagem de sem-abrigo e para evitar que as pessoas me reconhecessem. Simultaneamente teria que tomar atitudes que não são as minhas normalmente, pelo que poderei ser um mau ator, mas que as imagens são muito teatrais, enfim, isso também estava suposto desde o princípio. Em relação ao “fake”, percebo a sua ideia, no entanto, partindo do princípio de que estamos numa relação de verdade meramente semântica, e que a fake se opõe o antónimo real (não o adjetivo português real, mas o real inglês) (ou seja, não estamos aqui perante uma relação lógica true-false que implique o terceiro excluído, mas uma outra (fake-real) que, pelo contrário, o suponha), as imagens podem estar fake mas o percurso foi real.
Finalmente duas pequenas notas:
Em primeiro lugar sobre a radicalização do discurso. Afirmar que as imagens “matam” o resto do conjunto, parece-me hiperbólico. Quando se emite uma opinião crítica nunca devemos radicalizar o discurso porque depois ficamos sem margem de manobra, para reformularmos esse mesmo discurso. Isto a propósito do "matam o que o texto nos dá". Ao escrever isto (e refiro-me especificamente ao verbo matar) já não tem qualquer hipótese de agora flutuar em termos de opinião, a não ser que a mude radicalmente (que nestes casos não é muito aconselhado). Sugiro-lhe que na próxima crítica, seja a quem for, utilize a expressão "empobrecem" em vez de "matam".
Em segundo lugar explicar por que considero a sua crítica apenas construti-va. Foi uma boa crítica, apontou os aspetos positivos e negativos (em relação a estes já lhe disse que estou de acordo consigo), no entanto faltou o va. Então o que é que o meu amigo consideraria uma boa imagem? Sem grandes detalhes até para não perder os direitos de autor, mas dizer algo de mais substantivo, não se limitar a dizer que “são pobres”. Então como seriam ricas?
Uma vez mais muito obrigado pela crítica
Com os melhores cumprimentos
Gostei! Muito!!! Adorei a menção à Mãe... Cuida-te.
ResponderEliminarBeijinhos
Silvita
Obrigado Silvita
EliminarBeijinhos para ti também